sábado, 28 de agosto de 2010

A minha, a sua, a nossa… raiva

Coisas muito interessantes acontecem de vez em quando. Alguns diriam, com razão, que coisas interessantes acontecem toda hora, quando não estamos distraídos.
Tentando desenvolver concentração, sento de vez em quando no banco da frente de casa para praticar shamata impura. Meus cães me fazem companhia, parados no portão do jardim. Eles adoram ficar controlando o movimento da rua, farejando quem passa, de orelhas em pé, atentos. Dependendo do estímulo oferecido, eles latem, abanam o rabo ou ignoram. É uma rua tranquila, deve ser meio entediante para eles.
Teve um dia, entretanto, em que aconteceu algo excepcional. De um silêncio tranquilo, com passarinhos cantando, de repente explode um pandemônio. Os cães enlouquecem! Se jogam contra as grades, latindo furiosamente, girando, pulando aos urros. Eu meditando… Engraçado, não cheguei a me abalar.
Vi, pelo canto dos olhos, que era um enorme pitbull, mas sabia que não havia perigo com as grades protegendo. O cachorrão passou e os pequeninos ficaram do lado de cá, ainda um bom tempo, latindo e arfando, arrepiados e agitados.
Passados alguns minutos, quando os cães já estão tranquilos novamente, de súbito, me invade uma onda de energia! Meu coração dispara, um calor sobe para a cabeça, meu corpo estremece e começo a arfar. Me falta o ar, a mandíbula se crispa, o corpo se tenciona todo. Procuro manter a imobilidade; afinal, estou meditando, mas, o que está acontecendo?!
Aos poucos, tudo esmorece e minha respiração volta ao normal. Porém, não posso deixar de sentir uma curiosidade avassaladora: o que foi isto? Uau! Que interessante! Foi uma nuvem de raiva? Pode a raiva se deslocar assim? Uma reação de susto retardada? Que barato! Vale a pena investigar.
A partir daí, comecei a prestar atenção ao surgimento das manifestações de raiva. E algum tempo depois, aconteceu outra experiência interessante para explorar. Na sala onde trabalho resgatei um antigo quadro negro, daqueles empoeirados. Assim que eu levei uma caixinha de giz colorido, os colegas começaram a colocar frases, pensamentos e caricaturas. O pessoal entrava na sala e já ia comentando, animava a sala.
Nesta mesma época, fiquei sabendo em uma conversa informal, que nosso querido Lama Samten curtia o Raul Seixas. A curiosidade foi despertada e então fui familiarizar-me com seu trabalho artístico. Encontrei uma reportagem com algumas citações super instigantes atribuídas ao Maluco Beleza e uma delas me chamou a atenção em particular. Então, no dia seguinte, escrevi a mensagem no quadro negro do escritório. Era um pensamento polêmico, transgressor e provocante, mas ao mesmo tempo muito verdadeiro e profundo. Na minha opiniãozinha.
Algumas horas depois, estou trabalhando na frente do computador, muito concentrada em um desenho arquitetônico bem detalhado. Desloco uma janela para cá, giro uma porta para o outro lado. Clico aqui, dou um zoom na tela. Completamente envolvida na tarefa.
Só que uma conversa entre colegas começa a se infiltrar naquele momento:
– Ridículo!
– Mas, também, era um débil mental…
Os comentários começam a captar minha atenção, mas ainda estou muito envolvida com o projeto. Quem sabe se eu colocasse mais uma janela nesta sala não ficaria melhor? A minha consciência auditiva, entretanto, agora está focada na conversa:
– Era um louco mesmo!
– Me admira muito colocar isto aí…
Bom, a partir daí, se eu tinha alguma dúvida de que o assunto me envolvia, agora ficava bem claro. Meus colegas estavam mesmo debochando da frase no quadro negro! A partir deste instante, meu corpo e minha energia começam a reagir de forma intensa. Um calor toma conta do rosto, a respiração fica curta e rápida, os músculos se tensionam e o coração dispara. Estou pronta para pular em defesa do Raulzito!
Só que a arquiteta ainda está concentrada no desenho: menu, clique, zoom; parede, porta, janela. A atenção se alterna, mas a raiva já inunda os sentidos: os dentes crispam, os olhos lacrimejam e a garganta aperta. O curioso é que o processo se passa em câmera lenta, permitindo observar que a mente dividiu-se: uma parte está se enfurecendo com os comentários, outra está envolvida em resolver uma planta baixa e uma terceira está observando a confusão e achando tudo incrivelmente interessante!
Claro que, passado alguns instantes, tudo se acalmou. As críticas cessaram, a respiração voltou ao normal e eu continuei trabalhando. Mas ficou a deliciosa descoberta de que, como os mestres seguidamente ensinam, é possível a gente não se engajar na raiva, percebendo-a apenas como uma manifestação de energia.
Voltando aos cachorros, agora. Ultimamente ando fascinada com um programa de TV chamado O Encantador de Cães. O adestrador Cézar Milan (ou reabilitador de cães, como ele prefere ser chamado) mostra algumas técnicas fabulosas para docilizar e equilibrar os animais, as quais, me parece, se aplicam também ao treinamento da mente humana. Lembro de já ter lido sobre mestres de meditação tibetanos comparando nossa mente com um cavalo selvagem, mas acho que cães neuróticos estão mais próximos da nossa realidade, fica mais fácil de entender.
Uma das técnicas que o adestrador utiliza frequentemente é: nunca permitir que a perturbação mental atinja o nível dez (que seria um nível perigoso e imprevisível). Nos primeiros sinais de atenção tensa mal dirigida, deve ser usado algum toque para distrair a mente do cão, restabelecendo o equilíbrio que, segundo ele, é o estado natural do animal. Alguma semelhança com instruções de meditação? Certamente.
Então, fica a sugestão: que tal tentarmos criar algum meio hábil para distrair nossa atenção de forma benéfica antes que a emoção perturbadora tome conta? Pode ser algo como respirar fundo, contar até dez, cantarolar uma melodia ou pedir que um amigo nos dê um peteleco na orelha!
No futuro, quando os malefícios da ira ficarem cientificamente comprovados, talvez passemos a usar dispositivos eletrônicos invisíveis para nos alertar, amorosamente, quando estivermos precisando. De preferência com cócegas que nos provoquem um sorriso.

POR Luisa Levandowski

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